Cartilha Educativa Racismo Religioso

As religiões de matriz africana são os principais alvos do que tem sido chamado, genericamente, de “intolerância religiosa”. O avanço dos ataques às comunidades tradicionais de matriz africana no Brasil tem crescido nos últimos anos, mas não é difícil saber quem são as vítimas desses ataques. O termo “intolerância religiosa”, apesar de comumente utilizado, limita nossa luta e não parte de uma compreensão sistêmica.


Mais do que um conjunto de crenças e rituais, as religiões constituem a cultura e o espírito de um povo, sua subjetividade, seus valores e ideais. Destruí-la significa exterminar um modo de vida, de relação com o mundo e com as pessoas. Rituais e tradições de religiões de matriz africana são estigmatizados, e seus participantes têm a humanidade negada em razão de sua fé. Não se trata apenas de intolerância contra as religiões dos orixás, voduns e inquices, mas de violência e racismo estrutural contra negros e negras, suas ideias, seus valores, suas crenças e formas de vida. Ou seja, trata-se de racismo religioso.

Nesta cartilha, vamos abordar, dentre alguns pontos importantes, os ataques sofridos pelos praticantes das religiões de matriz africana como manifestações de “racismo religioso”. As ações que dão corpo ao racismo religioso no Brasil empreendem uma luta contra os saberes de uma ancestralidade negra que vive no nosso cotidiano, nos ritos, na fala, nos mitos e nas artes de sua descendência. São tentativas organizadas e sistemáticas de extinguir uma estrutura milenar que fala sobre modos de ser, de resistir e de lutar.

É a partir dos passos de nossa ancestralidade que organizamos nossa resistência e as possibilidades para o futuro. A Mandata Renata Souza fez a escolha política de ser, no Estado do Rio de Janeiro, um espaço de articulação e criação de mecanismos institucionais ou não institucionais na resistência e na luta contra o racismo religioso, em conjunto com Yalorixás e Babalorixás, fiéis e militantes da luta pela preservação da memória dos povos de axé.

Racismo religioso e suas múltiplas expressões


Para nos constituirmos como sujeitos, internalizamos figuras de autoridade representadas pela família, pelas religiões e instituições do Estado. A construção da subjetividade está, portanto, ligada diretamente a um conjunto de relações sociais.

No Brasil, estas figuras são hegemonicamente brancas. E nossa tradição cultural é hegemonicamente baseada nas relações ocidentais-europeias-cristãs.

O negro, para ingressar na vida social, se vê obrigado, conscientemente ou não, a renunciar seu corpo, sua tradição familiar e sua crença - que é negra e deslegitimada pelas estruturas brancas de poder e de saber.

Quando se destrói o culto tradicional do povo negro, como no caso das religiões de matriz africana, dá-se um processo de despersonalização daquele sujeito, em especial aquele que professa sua fé na contramão da hegemonia branca. O "eu" deste sujeito é esfacelado e seu sofrimento emocional é bastante agudo.

O racismo religioso se expressa de forma muito violenta psicologicamente, pois busca desconstruir uma subjetividade que sobrevive na resistência. A força sempre chega acompanhada da deslegitimação, da desqualificação e do desmerecimento do sistema de crenças em que se baseia essa fé.

Este indivíduo se vê fragilizado, desconceituado e colocado à prova, como se seus valores não fossem dignos de respeito. É uma agressão social, racial e psicológica, pois abala todas as expressões do ser social, do sujeito e de suas relações. Essa brutalidade ainda se expressa de forma:

Agressões físicas que resultem em dano pessoal ou patrimonial ao indivíduo.

Exemplos: Lesões corporais, destruição de objetos sagrados, invasão e destruição de Casas de axé.

Agressões não físicas que comportem sentimento de inferioridade, humilhação ou qualquer outro dano moral.

Exemplos: Xingamentos, publicações em periódicos, livros ou outros impressos que depreciam os adeptos da religião.

Discriminações realizadas pelas instituições públicas ou particulares, criando tratamentos desiguais pautados na crença do indivíduo.

Exemplos: Não permissão de entrada para realização de culto em hospitais; estabelecimento de requisitos que impeçam a concessão de imunidade tributária das religiões afro-brasileiras; realização de atos litúrgicos de determinada religião em escolas ou estabelecimentos públicos.

Depreciação ou descaracterização de objetos ou símbolos sagrados.

Exemplos: Descaracterização do acarajé; [demonização de] dos Orixás.

Se uma pessoa for vítima de racismo religioso, ela deve:
Ícone de lupa na cor branca dentro de um círculo na cor azul escuro

1º: Procurar identificar o agressor ou a instituição que tenha participado ou incitado o ato de intolerância.

Ícone de um celular com uma câmera fotográfica na cor branca dentro de um círculo na cor azul escuro

2º: Tentar filmar ou fotografar o ato de intolerância ou obter cópia do documento que promova a discriminação.

Ícone de um crachá de um usuário na cor branca dentro de um círculo na cor azul escuro

3º: Identificar (nome, telefone e endereço) testemunhas que presenciaram o fato, quando possível.

4º: Procurar uma Delegacia, de preferência uma DECRADI, e registrar imediatamente Boletim de Ocorrência, indicando, com o máximo possível de detalhes, os atos que possam ser caracterizados como intolerância religiosa.

5º: Procurar a Defensoria Pública do Estado instalada na cidade, portando cópia da seguinte documentação:

  1. Cópia dos documentos pessoais (RG, CPF, comprovante de endereço);
  2. Rol de testemunhas (nome, telefone e endereço);
  3. Cópia do Boletim de Ocorrência;
  4. Cópia das fotos, filmagens ou documento discriminatório.

Por que legalizar?


A legalização do espaço religioso das comunidades tradicionais de matriz africana configura-se como um passo importante na valorização e no reconhecimento de seu legado cultural e de suas liturgias. A legalização favorece a construção de um caminho de respeito às diferenças e à garantia da igualdade, no intuito de tornar concreto e real o Estado Democrático de Direito laico que valorize as diversas tradições e os costumes que formam historicamente nosso país.

As Casas Religiosas de Matriz Africana que têm seu território juridicamente reconhecido passam a exercer novos direitos que até então não eram exigíveis, mas em virtude deles, passam também a assumir novos deveres.

Essa escolha deve ser feita livremente pelos membros que compõem a organização religiosa e participem no território sagrado. Não deve ser vista como forma de garantir privilégios pessoais, mas uma maneira de fortalecer sua tradição e construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Nesse sentido, a legalização das Casas Religiosas de Matriz Africana permite reconhecer uma série de direitos, tais como:

  • Criar e manter faculdades e institutos teológicos ou instituição equivalente, com o objetivo de preparar seus “Ministros Religiosos”;
  • Criar uma creche, escola de ensino fundamental, de ensino médio ou faculdade - escolas confessionais (Decreto-Lei nº 1.051 de 21 de outubro de 1969);
  • Preparar, indicar e nomear seus sacerdotes ou sacerdotisas;
  • Manter locais destinados aos cultos e criar instituições humanitárias ou de caridade: ensinar uma religião ou crença em local apropriado;
  • Elaborar e divulgar publicações religiosas;
  • Solicitar e receber doações voluntárias;
  • Criar cemitérios e construir jazigos no próprio templo religioso para o sepultamento das autoridades religiosas;
  • Realizar atividades religiosas em locais fechados ou abertos, ruas, praças, parques, praias, bosques, florestas ou qualquer outro local de acesso público;
  • O templo religioso torna-se isento do pagamento de qualquer imposto.

Como legalizar?


1

Entender os direitos e deveres em reunião preliminar com o corpo mediúnico (os membros da Casa) para compartilhar e validar a necessidade de legalização da Casa. Além disso, é necessário entender que o terreiro, a Casa, passará a ser uma Associação.


Escolher o nome da Casa religiosa (se ainda não tiver) e verificar no Registro Civil de Pessoa Jurídica (RCPJ) se não existe outra Casa registrada com esse nome.

2

3

Expor na Casa, em local visível e com antecedência de um mês, o Edital de Convocação da Assembleia Geral para Constituição da Associação (Assembleia de Fundação) e eleição da Diretoria. Além do aviso na Casa, a divulgação pode ser por meio de e-mail aos membros da Casa.


Criar o Estatuto Social da Associação, levando em conta o artigo 54 do Código Civil e considerando estes pontos.

4

5

Na Assembleia de Fundação e eleição da Diretoria, deve acontecer:

  1. Apresentação da Diretoria proposta
  2. Eleição da Diretoria pelos membros presentes
  3. Apresentação e aprovação do Estatuto da Associação
  4. Elaboração de ATA com registro da Assembleia e assinatura dos presentes

Após a legalização


Para que a Casa, agora Associação, possa exercer os direitos destacados, anteriormente, não pode deixar de cumprir as seguintes exigências:

1

Emitir mensalmente pelo contador a Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social (GFIP);

2

Emitir anualmente pelo contador o Regime de Apuração Simplificado (RAS), junto à Caixa Econômica, bem como a Certidão Negativa de Débitos (CND), junto ao INSS e à Receita Federal;

3

Declarar anualmente o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ). Apesar da isenção, os templos estão sujeitos à cobrança de multa no caso de atraso na entrega das declarações;

4

Realizar anualmente o balanço contábil;

5

Verificar as condições de pagamento de Taxa de Incêndio de acordo com o município em que se localiza a instituição

6

Reunir-se em Assembleia, conforme o período de renovação do mandato definido no Estatuto, para eleição de membros da nova Diretoria.