Ir para o conteúdo principal

Clareza, coesão e coerência

1. Clareza, coesão e coerência

Já vimos, nas aulas anteriores, que a comunicação verbal se baseia em uma série de recursos linguísticos para garantir sua efetivação. Quando se trata de comunicação escrita, os cuidados com a construção do texto aumentam. Um dos grandes desafios da construção de textos é obter uma mensagem clara, coesa e coerente.

Para iniciar esta aula, vamos ler um texto de Fernando Sabino.


Em código
  

Fernando Sabino



Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu irmão:

– Recebi de Belo Horizonte um recado dele para o senhor. É uma mensagem meio esquisita, com vários itens, convém tomar nota: o senhor tem um lápis aí?

– Tenho. Pode começar.

– Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.

– Precisa de quê?

– De uma nora.

– Que história é essa?

– Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio esquisito. Posso continuar?

– Continue.

– Segundo: pobre vive de teimoso. Terceiro: não chora, morena, que eu volto.

– Isso é alguma brincadeira.

– Não é não, estou repetindo o que ele escreveu. Tem mais. Quarto: sou amarelo, mas não opilado. Tomou nota?

– Mas não opilado – repeti, tomando nota. – Que diabo ele pretende com isso?

– Não sei não senhor. Mandou transmitir o recado, estou transmitindo.

– Mas você há de concordar comigo que é um recado meio esquisito.

– Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais. Quinto: não sou colgate, mas ando na boca de muita gente. Sexto: poeira é a minha penicilina. Sétimo: carona, só de saia. Oitavo...

– Chega! – protestei, estupefato. – Não vou ficar aqui tomando nota disso, feito idiota.

– Deve ser carta em código, ou coisa parecida – e ele vacilou: – Estou dizendo ao senhor que também não entendi, mas enfim... Posso continuar?

– Continua. Falta muito?

– Não, está acabando: são doze. Oitavo: vou mas volto. Nono: chega à janela, morena. Décimo: quem fala de mim tem mágoa. Décimo primeiro: não sou pipoca mas também dou meus pulinhos.

– Não tem dúvida, ficou maluco.

– Maluco não digo, mas como o senhor mesmo disse, a gente até fica com ar meio idiota... Está acabando, só falta um. Décimo segundo: Deus, eu e o Rocha.

– Que Rocha?

– Não sei: é capaz de ser a assinatura.

– Meu irmão não se chama Rocha, essa é boa!

– É, mas que foi ele que mandou, isso foi.

Desliguei, atônito, fui até refrescar o rosto com água, para poder pensar melhor. Só então me lembrei: haviam-me encomendado uma crônica sobre essas frases que os motoristas costumam pintar, como lema, à frente dos caminhões. Meu irmão, que é engenheiro e viaja sempre pelo interior fiscalizando obras, prometera ajudar-me, recolhendo em suas andanças farto e variado material. E ele viajou, o tempo passou, acabei me esquecendo completamente o trato, na suposição de que o mesmo lhe acontecera.

Agora, o material ali estava, era só fazer a crônica. Deus, eu e o Rocha! Tudo explicado: Rocha era o motorista. Deus era Deus mesmo, e eu, o caminhão.

 

Fonte: SABINO, Fernando. Em código. In: ______. A mulher do vizinho. Rio de Janeiro: Record, 1976. p.171-173.