Foucault (1998) identificava que o biopoder é elemento principal de desenvolvimento do capitalismo. Para ele, o biopoder requer um grande investimento do poder sobre os corpos, em que saúde, bem-estar, higiene, sexualidade são transformados em preocupações básicas para controle ou disciplina dos indivíduos: o exercício do biopoder, por exemplo, pode ser sedutor, chegando a legitimar a importância do corpo e a defender sua saúde e bem-estar. Tudo se passa como se na esfera do biopoder fosse necessário falar e se preocupar cada vez mais com o corpo para melhor controlá-lo (SANT’ANNA, 2000, p. 81, 82).
É a aparência do corpo, no discurso da saúde, que dita, geralmente, o caminho em busca de poder e status. A aparência detém o controle social, político e econômico. Consequentemente, esta realidade influencia as relações sociais, pois o corpo preconizado como “saudável/belo” é requisito para a inserção dos indivíduos num grupo determinado. E ademais, revela muitas vezes o nível socioeconômico comprovado pela transmutação do corpo a partir de aulas em academias de ginástica acompanhadas de personal training, cirurgias plásticas, uso de anabolizantes e implantes de silicone. A cirurgia plástica (estética), anteriormente, era uma prática que indicava o envelhecimento do corpo. Algo inadmissível numa sociedade que “vende” e consome jovialidade. O quadro mudou. Afilar nariz, retirar rugas, fazer lipoaspiração, implantar silicone atingem as diversas faixas etárias. O desejo desenfreado de modificar-se corporalmente é preocupante, quando se perde ou se desconsidera a noção ética. O corpo pode então, construir, ser construído e alterado a partir do contexto sociocultural influenciado também pela mídia. Como afirma CARDOSO (1997, p.3): [...] nossa aparência física é, em grande parte, culturalmente programada. A aparência que hoje ostentamos é de algum modo aprendida. Conformamos e adaptamos o corpo segundo padrões sociais estabelecidos, aprendemos a nos movimentar e a nos posicionar, de acordo com circunstâncias socialmente determinadas. Construir, modificar o corpo... Nesse propósito, a transmutação do corpo, respaldada na biotecnologia é, de fato, um advento inegável da modernidade. Estejamos atentos que outrora ao discutir sobre o corpo, retornava-se principalmente a Descartes para abordar o binômio dualista mente/corpo, matéria/espírito. Sem desconsiderar a importância desse referencial teórico, como ponto de partida para o avanço nesta discussão, é oportuno ressaltar que atualmente as reflexões dessa temática atingiram dimensões talvez inimagináveis. CARDOSO (1997) afirma que o corpo agora é uma transmutação biotecnológica. Assim como esse autor, este estudo ao refletir sobre transmutação do corpo, também considera o termo cyborg, criado por Manfred Clynes, em 1960, para designar um organismo cibernético. Essa terminologia refere-se à relação entre o organismo e a máquina, atribuindo-se ao corpo uma dimensão de transformação constituída de aspectos biológicos e artificiais, inatos e adaptados pela técnica. A nova dimensão tecnológica do corpo traz consequências para a sua natureza e seus próprios limites. Acrescenta CARDOSO (1997, p.10): a figura do cyborg nos ajuda a compreender o cenário que procuramos compor: juntar mitos e ferramentas, representações e realidades encarnadas. Talvez uma das marcas que distinguem nossa época, o fato de a tecnologia estar realizando antigos sonhos da humanidade. No caso do cyborg deve-se considerar que sua existência, além de realizar algumas destas junções, desfaz antigos conceitos, produzindo compreensões inesperadas. É nessa relação que também se revela a fragilidade da identidade humana ao crer que manter o “corpo em forma” significa melhor aparência física, saúde, bem-estar e beleza. Vive-se entre a imagem real e a imagem ideal! As imagens em capas de revistas, outdoors, embalagens de cosméticos etc. são de pessoas esbeltas e olhos brilhantes, corpos quase despidos, vestidos com roupas de ginástica ou biquínis. A imagem corporal do obeso, contrária à imagem ideal, é constantemente estigmatizada e serve de motivo de risos e deboche, como no filme O Professor Aloprado. Vale lembrar a ideia de SOARES (1998, p.18) sobre a educação do corpo, no tocante à ginástica: “os corpos que se desviam dos padrões de uma normalidade utilitária não interessam”. A ideia da autora refere-se ao século XIX, no entanto, tal afirmação ainda é atual no século XXI quando pessoas que fogem do padrão vigente chegam às academias de ginástica ou escolas já “seduzidas” pela urgência de emagrecer com atividade física para serem saudáveis. Os corpos “diferentes” só interessam à mídia, academias de ginástica e clubes como o mau exemplo. A partir deles faz-se a propaganda “terrorista”. Com isso, vendem-se mais roupas esportivas, receituários de emagrecimento e aumenta-se o número de adeptos à atividade física. É preciso reforçar que o corpo magro ou musculoso não é exemplo maior de saúde. Estejamos atentos aos casos de anorexia e usuários de anabolizantes. O avanço tecnológico propiciou aos indivíduos utilizar este progresso como recurso estético relacionado à saúde, satisfazendo os desejos de diminuir barriga, eliminar celulites, gorduras localizadas, aumentar ou diminuir seios, e ainda atingir o padrão de beleza. A intenção da mídia, operacionalizada nas academias de ginástica, escolas e centros cirúrgicos, é estabelecer uma aparência unificada, como se fosse possível uma vida saudável homogênea. Os implantes de silicone e a lipoaspiração retratam a imagem “enlatada” da mulher norte-americana no Brasil. Os recursos cirúrgicos foram associados à biotecnologia para alterar forma, tamanho, composição do corpo e consequentemente atender ao interesse da saúde/ beleza feminina. Para LÉVY (1998), estes implantes e as próteses confundem o limite entre o mineral e o vivo: óculos, lentes de contato, aparelhos ortodônticos, marca-passos, aparelhos auditivos, filtros externos funcionando como rins sadios etc. Enfatiza-se que este estudo não busca visualizar a transmutação do corpo apenas como um recurso estético, mas chamar à atenção deste artifício como elemento de interesse social, político e econômico. O entrelace da biologia com a tecnologia possibilita também um tempo maior de vida e melhor condição de saúde a partir de transplantes de órgãos, marca-passos, próteses e outros, desde que não se perca a questão ética. |
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