Ir para o conteúdo principal

Desenvolvimento da aula

1. Aforismos da crase

Aforismos da crase

 

Ferreira Gullar

"A crase não foi feita para humilhar ninguém" – esse aforismo que escrevi em 1955 ganhou popularidade e terminou sendo atribuído a vários escritores, menos a mim: a Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Otto Lara Resende e até a Machado de Assis. E de pouco adiantou a probidade desses escritores (os vivos, naturalmente), apontando-me como o verdadeiro autor de aforismo que àquela altura já passava a ser atribuído a autores estrangeiros...

Nesse particular, aliás, eu não dou sorte. Num encontro aqui no Rio com García Marquez, na casa de Rubem Braga, contaram-lhe que, quando me perguntam se sou Ferreira Gullar, tenho mania de responder: "Às vezes." E o faço por uma razão simples: tenho dois nomes, o outro, de batismo, é José Ribamar Ferreira. E também porque nem sempre sou capaz de escrever os poemas que o Gullar escreve...  ainda que maus. Pois bem, não é que o García Marquez chegou de Portugal e, numa entrevista, atribuiu essa frase a Jorge Luis Borges? É claro que tais confusões só me lisonjeiam.

Mas a verdade é que certo dia me vi induzido a escrever uma série de aforismos sobre a crase, esse grave problema ortográfico e existencial que boa parte dos escritores, jornalistas e escrevinhadores em geral não conseguem resolver. A crase tornou-se assim um pesadelo nacional. Hoje menos, porque já ninguém sabe o que é escrever certo ou errado. Mas, naqueles idos de 1955, as pessoas tremiam diante de certos "aa". Talvez por isso o meu aforismo teve tão boa acolhida e rapidamente espalhou-se pelo país.

 A mania de forjar aforismos eu a adquiri dos surrealistas, que criaram obras-primas como: "Bate em tua mãe enquanto ela é jovem." Em 1955, no suplemento literário do Diário de Notícias, publiquei os meus "Aforismos sobre a crase", antecipados de uma introdução que não vou transcrever aqui porque não tenho comigo o recorte, extraviado em alguma das tantas pastas que guardo no armário do escritório. Os aforismos, tentarei relembrá-los e reconstitui-los. Vamos a eles.

 “A crase não foi feita para humilhar ninguém.” 

“Maria, mãe do Divino Cordeiro, craseava mal, e o Divino Cordeiro, mesmo, não era o que se pode chamar um bamba na crase.”

“Zaratustra, que tudo aprendeu com os animais do bosque, veio aprender crase numa universidade da Basiléia.”

“Quem tem frase de vidro não atira crase na frase do vizinho.”

“Frase torcida, crase escondida.”

“Antes um abscesso no dente do que uma crase na consciência.”

“Uns craseiam, outros ganham fama.”

“Os campeões da crase quando erram ditam leis.”

“Os ditadores não sabem que, em frases como a bala ou à bala, é indiferente crasear ou não.”

“Oh!, Univac, que craseais sem pecado, craseai por nós, que recorremos a vós!”

Nota: Univac era o computador mais avançado na época. Anos depois, abro uma revista e lá está no alto de um anúncio de página inteira: "A crase não foi feita para humilhar ninguém – computadores IBM”. Não me pediram permissão para usar o aforismo, claro, porque ninguém sabia de quem era. E eu estava clandestino, foragido da ditadura, sem poder botar a cabeça de fora. Não me atrevi a cobrar os meus direitos autorais. Mas a IBM bem que podia, agora que estamos em plena democracia, pagar o que me deve...

Fonte: GULLAR, Ferreira. Aforismos da crase. In: ______. A estranha vida banal, 1989. Disponível em: http://www.mail-archive.com/policia-livre@grupos.com.br/msg06833.html. Acesso em: 15 mar. 2011.