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Desenvolvimento da aula - Leitura de Artigo

Site: Instituto Multidisciplinar de Formação Humana com Tecnologias
Curso: Estudos do Corpo: Cultura, Sociedade e Práticas Pedagógicas - TURMA 1 - TURMA 2 - TURMA 3
Livro: Desenvolvimento da aula - Leitura de Artigo
Impresso por: Usuário visitante
Data: quinta-feira, 19 set. 2024, 13:23

Descrição

Desenvolvimento da aula - Leitura de Artigo

Para melhor aprofundarmos tais reflexões, apresento um texto de Léa Tiriba em que desenvolve ideias desse viés que estamos debruçados nesta aula e que pode nos auxiliar a desenvolver nossas próprias concepções.

O texto em questão funcionou com suporte de um interessante programa da TVE em que se discutiu por uma semana inteira o tema “corpo” na escola e sociedade a partir de vários debatedores da área de estudos, com inserções ao vivo dos telespectadores.

 Texto de Léa Tiriba: Boletim Salto para o futuro nº 4 – 2008

O corpo na escola

Entre os séculos XVII e XIX ganha força a ideia de uma separação entre mente e corpo, uma das bases sobre a qual se fundou uma ciência e uma civilização que hipervalorizaram a racionalidade e o trabalho, em detrimento de outros caminhos de conhecer e modos de viver, buscando suprimir todas as outras formas de conhecimento relacionadas à existência carnal dos seres humanos: os sentimentos, a imaginação, a intuição, o conhecimento sensual, a experiência. O objetivo desta série é o de debater e questionar uma lógica de funcionamento escolar ainda orientada pelo pressuposto de que “Penso, logo existo”, máxima do pensamento racionalista, que inspira e define, ainda nos dias de hoje, propostas pedagógicas e rotinas escolares.    

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    (...) Em todos os espaços, chama a atenção a formalidade, o vazio de referências infantis, não há objetos, brinquedos, desenhos das crianças... A organização é semelhante a das escolas de ensino fundamental: pequenas carteiras enfileiradas, mesa de professora ao lado do quadro-negro... Num prédio reformado, de pintura brilhante, limpeza caprichada, crianças de três para quatro anos assistem, enfileiradas em pequenas e coloridas carteiras escolares individuais, a uma professora que se esmera em explicar-lhes  noção de conjunto. O que mais impressiona é o formidável empenho e a delicadeza da professora em sua intenção de ensinar conceitos matemáticos, ali no quadro-negro...  As crianças, desconfortáveis e desengonçadas nas carteiras, apenas repetiam suas palavras: “Quantos elementos têm aqui? Trêeeees.......!!!” Depois desta atividade, exercícios no papel. Na sala ao lado, crianças bem menores, algumas ainda bebês de 1 ano e pouco, cercadas por todos os lados das mesmas carteiras coloridas. Do lado de fora, no pátio da escola, um colorido parque infantil, que as crianças desfrutavam por um período diminuto em relação ao longo tempo em que permaneciam na creche. Lá fora, depois da cerca, os campos, as árvores, os animais, o sol, as nuvens o vento...  (Observações feitas em escola infantil da área rural de um município do Rio de Janeiro - 21/05/01).
 

A cena insólita, mas tão comum nas escolas brasileiras, é a expressão de uma concepção de educação e de escola que, além de não fazer conexões entre conhecimento e vida, está voltada para processos de transmissão/apropriação de conhecimentos via razão, que necessita, portanto, de mentes atentas e corpos paralisados. Pois não é necessário mais do que atenção mental para observar, refletir e compreender as regras de uma realidade que é entendida como racionalmente organizada. Em outras palavras, o modo de funcionamento descolado do mundo natural indica que as práticas pedagógicas das instituições escolares estão definidas, geralmente, pelas concepções ontológica, epistemológica e antropológica que estruturam o paradigma moderno, compondo uma ideia de que as leis da realidade poderiam ser apreendidas por um ser cuja principal atividade é a racional (Plastino, 1994). Em consequência, fica secundarizado tudo que extrapola esta dimensão: as brincadeiras, as sensações corporais, o devaneio.... Mas isto não é só: a reprodução deste modo de funcionamento se faz com o controle do corpo.

Denominada por Foucault (1987) como instituição de sequestro, a escola e outras instituições, como os presídios, os hospícios e os quartéis, visavam controlar não apenas o tempo dos indivíduos, mas também seus corpos, extraindo deles o máximo de tempo e de forças. De maneira discreta, mas permanente, as formas de organização espacial e os regimes disciplinares conjugam controle de movimentos e de horários, rituais de higiene, regularização da alimentação, etc. Assim, historicamente, a escola assume a tarefa de higienizar o corpo, isto é formá-lo, corrigi-lo, qualificá-lo, fazendo dele um ente capaz de trabalhar.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                

(...) A ordenação por fileira, no século XVII. Começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos nas salas, nos corredores, nos pátios; (...) determinando lugares individuais (a organização de um espaço serial) tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo e da aprendizagem. Fez funcionar o espaço como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (Foucault, 1987, p. 126).

As filas que se formam para levar as crianças de um espaço a outro, os tempos de espera em que permanecem encostadas às paredes, a falta de conforto das salas, as regras que são impostas nos refeitórios, os tempos previamente definidos para defecar: tudo isto remete à ideia de fabricação de uma retórica corporal, mas também de uma retórica do espírito, pois, “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Foucault, 1987, p.118).

Tendo como referência a concepção espinosiana de que a vivência do que é bom e do que é mau constitui dois tipos humanos, que vivem, aprendem e incorporam distintos modos de sentir e viver a vida (como potência ou como impotência), consideramos que esta perspectiva (de controle do corpo) está na contramão de um projeto de educação pautado numa ética da alegria e do cuidado, na medida em que favorece a constituição de um tipo humano que é fraco, impotente (Espinosa,1983; Deleuze, 2002).

Se somos capazes de produzir história e cultura, como produzir um cotidiano que se paute pela vivência do que é bom, que alegra e, que frente à vida, nos faz mais potentes? Como favorecer encontros que compõem? E como evitar os maus encontros, que decompõem, produzem tristezas? Se estas são sempre expressões da nossa impotência, como trabalhar no sentido de um cotidiano em que, diria Espinosa, as paixões alegres se sobreponham às paixões tristes? 

Uma resposta possível é: acreditando nos desejos das crianças, apostando em sua capacidade de escolha, possibilitando contato permanente com o mundo natural, brincadeiras, livre movimento do corpo. Entretanto, é evidente a distância da realidade escolar em relação a esta crença e a este movimento a favor do prazer, da potência. Onde estão as origens deste modo de funcionamento?

Educação, escola e divórcio entre natureza e cultura, corpo e mente


Desde a Revolução Industrial, (que inaugurou a reprodução em série de bens materiais) e, depois, a Revolução Francesa (que superou o feudalismo e propôs o mercado como eixo da vida social) a função social da escola vem sendo a de ensinar às novas gerações a lógica sob a qual o sistema capitalista-urbano-industrial-patriarcal se estrutura. 


No contexto de uma ordem capitalística em que o sentido principal do trabalho social é a produção e a acumulação de bens, a escola está ainda organizada de acordo com o pressuposto de que a razão pode decifrar a lógica interna da natureza. Isto explica que o objetivo fundamental do trabalho escolar seja o de desenvolver plenamente em seus alunos a capacidade racional para a compreensão e a submissão da natureza aos interesses do mercado, desprezando ou secundarizando outros caminhos de abordagem da realidade material e imaterial. Assim, alguns conceitos/idéias/sentimentos/visões de mundo – constitutivos dos ideais da modernidade – orientam concepções e práticas escolares em nosso tempo. Primeiramente, uma crença na razão como salvo-conduto para enfrentar os ritmos da natureza, que são tomados como obstáculos para um espírito conhecedor, pesquisador, desvendador de todos os mistérios da vida, que seria capaz, inclusive, de determinar os rumos da história. Há, em conseqüência, supervalorização do intelecto e desprezo pelo corpo. Esta é uma decorrência da lógica dual que, separando seres humanos de natureza, afirma a racionalidade como processo superior, em oposição à natureza, identificada com o corpo humano. 


No coração da lógica paradigmática está uma idéia de superioridade em relação à natureza: a faculdade da razão não apenas coloca o “Homem” acima dos animais, como, por sua qualidade, é superior a qualquer outra espécie. Decorre daí que o pensamento seja considerado a atividade humana mais importante, que a cultura se apresente como a característica peculiar do homem, pela qual se distingue como um ser especial, diferente dos animais e das coisas e, portanto, acima deles. Nesta perspectiva, a ordem natural seria inferior à ordem cultural, tudo O que é relativo a este plano se sobrepõe. Assim, a cultura antropocêntrica fragmenta o que é uno: separa os humanos da natureza, a razão da emoção, definindo uma oposição hierárquica entre as partes, uma das quais é sempre considerada como superior e sempre progride mediante a subordinação a outra (Mies e Shiva, 1997).  Assim, a natureza aparece subordinada aos homens, a mulher ao homem, o consumo à produção, o local ao global, a emoção à razão, o corpo à mente.


Onde nasceu esta dupla fragmentação, marcante na trajetória do pensamento ocidental? Na visão de Nietzsche (2000), já no momento de surgimento do pensamento filosófico científico, na Grécia, algo de essencial se perdeu na relação dos humanos com a natureza e no equilíbrio entre afetivo e cognitivo.


Para Nietzsche, a tradição filosófica ocidental inaugura um afastamento em relação à natureza, que é nefasto para os humanos, na medida em que provoca um desequilíbrio patológico entre corpo e mente, razão e emoção. Na sua visão, algo de essencial se perdeu quando, a partir de Sócrates, os gregos começam a se afastar dos rituais a Dionísio, o deus da música e da embriaguez, e passam a privilegiar Apolo, o deus da racionalidade argumentativa, do conhecimento científico, da lógica. Dionísio é o deus que não habita o Olimpo, mas a natureza. Representa a força vital, a alegria, o excesso, enquanto Apolo, o deus severo, representa a ordem, a norma, o equilíbrio. Para Nietzsche, “a história da tradição filosófica é a história do predomínio do espírito apolíneo sobre o espírito dionisíaco” (Marcondes, 1997, p.243), ou seja, é a história do predomínio da razão sobre o desejo. A decadência e a fraqueza da cultura ocidental teriam sua origem neste predomínio da racionalidade sobre a imaginação, as emoções, as sensações, que o filósofo define como “forças afirmativas da vida”. Em sua visão, esta distorção teria sido reforçada por elementos trazidos posteriormente pelo cristianismo, como a culpa, o pecado, a submissão, o sacrifício.


O conceito de corpo (do latim, corpus) vem se transmutando ao longo da história do Ocidente. Durante a época moderna, a discussão sobre o que se convencionou chamar de “problema da relação entre alma e corpo” manteve algumas das concepções antigas e medievais. Mas o desenvolvimento da ciência, em especial da física, em moldes mecanicistas, trouxe a noção de “corpo material”, radicalmente separado da alma. 


Descartes (1596-1650) é o expoente desta distinção entre a substância ou “coisa” extensa (res extensa) e substância ou a “coisa” pensante (res cogitans). Para o pensamento cartesiano, o corpo material opõe-se ao espírito, à alma, ao pensamento, na medida em que estes seriam indivisíveis, enquanto que o corpo/ a matéria seriam divisíveis (Japiassu e Marcondes, 1996).

Na contramão da concepção cartesiana – em que a mente domina o corpo e as paixões, e tem o poder de explicar todas as funções corporais de modo puramente mecânico – Espinosa (1632-1677), ao invés de perguntar “o que é um corpo”, ao invés de buscar uma definição, interroga: “o que pode um corpo?” Ao fazer esta pergunta, fere a lógica descrita por Descartes, segundo a qual todas as funções corporais podem ser explicadas, medidas, quantificadas. Para Espinosa, estamos fechados nos limites corpóreos, mas podemos fugir sempre, graças à força que nos impulsiona para além. Assim, não haveria hierarquia entre corpo e alma, “há uma força inconsciente no espírito, assim como há uma potência insuspeita no corpo” (Barros e Passos, 2000, p. 3). 

Entretanto, ao assumir a função de formar as novas gerações para a reprodução do modelo urbano-industrial, a instituição escolar ignorou concepções que não fragmentam nem subordinam o corpo à mente. Ao contrário, optou por uma visão que, ao hipervalorizar o ego e o intelecto, nega a verdade do corpo. De fato, temos sentido as conseqüências de um cotidiano regido por uma rotina de esforços mentais e inflexibilidade física. As doenças se manifestam, são resultado de um modo de funcionamento – da sociedade, da fábrica, da escola, da instituição familiar, de cada um de nós – que é alienado em relação a muitas das mais elementares necessidades físicas, como respirar profundamente, alimentar-se sadiamente, dormir bem, relaxar.


O corpo humano é mais do que um portador do texto mental

Numa sociedade marcada por controle e racionalidade, os movimentos de liberdade e expressividade das crianças assustam os adultos. Amarrados ao império do relógio, ao tempo da produção, estamos aprisionados aos próprios esquemas, ou melhor, aos limites que nos foram impostos, na vida escolar, na família, no trabalho. Tendo aprendido a engolir os desejos, são estes mesmos esquemas que necessitamos reproduzir, através das normas que pretendemos impor às crianças, modelando os gestos e, simultaneamente, aquietando o espírito. Pois, corpo e espírito não estão separados, o que é ação no corpo é, necessariamente, ação na alma (Espinosa,1983).

                                                                                                                                                                                                                                                                                         


“Há, em todos os lugares, como que a obsessão do controle, que perpassa todos os nossos comportamentos adultos com relação à criança; precisamos sentir-nos donos da situação, ter presentes todas as alternativas que a criança poderá escolher, porque só assim nos sentiremos seguros. A liberdade da criança é a nossa insegurança, enquanto educadores, pais ou simples adultos, e, em nome da criança, buscamos a nossa tranqüilidade, impondo-lhes até os caminhos da imaginação” (Lima, 1989, p.11).


Mas o desejo conspira... Na visão do filósofo Charles Fourier (1772-1837), porque ele não tem outras alternativas, outros caminhos para satisfazer-se! Torna-se, assim, um subversivo permanente, “que trabalha de maneira infatigável na desorganização da sociedade, desrespeitando todos os limites colocados pela legislação” (Konder, 1998, p.17). Isto acontece por uma questão de sobrevivência física e espiritual. O desejo persevera porque, oprimido, se manifesta como sintoma, como doença, do corpo e da alma, pois, “toda paixão estrangulada produz uma contrapaixão tão maléfica quanto a paixão natural seria benéfica” (idem, p.19).


Para “dançar” a sua dança e construir uma dança coletiva (o estilo de ser de cada grupo) precisamos de “espaços-ambientes” (Lima, 1989), que favoreçam esta construção, que abram espaços (objetivos e subjetivos) para o corpo e o movimento. A escola precisa recuperar a liberdade de movimentos que a vida na cidade grande e seu respectivo modelo de funcionamento escolar restringiram, impedindo as mais simples e fundamentais manifestações como correr, pular, saltar, etc. 
“(...) Tudo isto traz também uma redução da confiança no próprio corpo e uma certa sensação de impotência que é difícil de erradicar, apesar de muitas vezes tentar-se compensar a criança dando-lhe maior estimulação de sua fantasia ou de sua inteligência, através de tantos meios de que dispomos atualmente, conseguindo assim que o centro intelectual supra uma carência que na verdade não pode cumprir porque corresponde a outros níveis de existência” (Palcos, 1998, p.2).

De acordo com Palcos (1998), a falta de liberdade de movimentos vai formando travas que impedem as crianças de fazer um crescimento harmônico. Como todo movimento se inicia ou deveria iniciar-se com um movimento reflexo, aqueles se perdem na medida em que estes ficam inibidos. As escolas, enquanto espaços de educação integral das crianças devem constituir-se como ambientes que contribuam para evitar o surgimento de travas, ou mesmo eliminar as que já tiverem se instalado, contribuindo para construir ou mesmo recuperar a liberdade e a confiança no corpo. Esta é uma das responsabilidades do educador que assume a educação integral das crianças, porque a confiança no próprio corpo está relacionada ao sentimento de confiança na vida.